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Fernando Coelho

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Trecho do diário de um autor desnecessário. Nunca mentira para uma mulher. Mas mentira, para si próprio. Não separava a manhã do dia. Começava a escrever cedo. Não tinha dimensão da solidão. Isso, de escrever, era o mais alto degrau de um infernal diálogo que travava. Da escrita e dele. Era uma relação desesperadora. Compreendia que escrever era mortal. Na mesa de vidro um vaso vermelho. Não tinha nenhum significado, não mais do que um ponto cego pra onde olhava. Uma decoração lerda. Era comum. As palavras rugiam de cavernas com fedor de alma. A maioria delas queria ficar onde estava, ou aparecerem escritas numa mesma palavra. Indomáveis. O seu trabalho era dissociá-las, dissecá-las, provocar-lhes um aborto de origem, socá-las o âmago amorfo. A sala não era maior do que o seu horizonte. Não entendia de medidas. Não podia comparar. Cada palavra tinha um significado. Achava-se um homem de significados. Mas entendia pouco de comportar-se, alimentar-se, dizer-se, precaver-se, alinhar-se, iludir-se, comprazer-se, animar-se, sonhar-se. Entendia somente daquela embocadura cavernosa, dilacerante, a lhe acumular emoções. Era isso sim, um transeunte, irmão de árvores sozinhas, parente próximo das portas que estavam ao seu redor. Os barulhos da rua, gritos, serras elétricas em prédios em construção, cachorros latindo, makitas cingindo granito, gente alegre por nada, automóveis, eram o fundo musical que mais gostava. O seu ato de escrever nunca foi reparador. Travava-lhe as costas quanto mais expunha o coração sanguinário e decomposto em cismas. Não tinha uma filosofia rígida que o fizesse entender o céu, nem colher a chuva, nem dimensionar quando não tinha trabalho. Não há trabalho para escritores. E ele era do pior tipo: rabugento, intragável, vil no trato, escanhoado de paciência, calvo de tolerância. Um letrado que não servia para o mercado. Era um escritor parecido com qualquer um: os que gostam muito de aparecer como escritor, sem saber escrever, mas com livros publicados e tudo, com os jovens escritores que amam suar os dedos para juntar expressões, ainda mais sobre rebeldia e amor e sexo. Ninguém quer escrever sobre guerras. Mas ele gosta, porque no fundo, ele mesmo é uma, ingênita, explosiva, miserável, pobre e fratricida. Hoje mesmo acha inútil escrever. Mas não é um ato separado dele. Se não o fizer, chora, procura matar-se na cozinha, olhando o fogo queimar a comida. O apetite afoga o seu dia. Se não escrever, é um sujeito pior, desordenado, ignorante, triste. Sua melhor companhia é a melancolia. Porque escrever não é um gesto, nem desagravo, nem uma ação cordial. Ele escrevia encurralado. Não tinha nenhuma saída. Entrega-se à própria prisão informal e escreve. Tem alguma convicção de que os escritores, quase todos, sentem o mesmo. Mas disfarçam numa taça de vinho de safra duvidosa, em noite de autógrafos de amigos distantes. Miseravelmente, ele ainda tem um problema: como não suporta ler o que escreve, espera, espera, ambíguo e atônito, que lhe apareça um leitor, apenas um. Ou morrerá sem apelo. E só.

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Sem depois

Chorar

Eu quero chorar!
Chorar como se só eu tivesse o direito.
Chorar como se só eu, no mundo inteiro,
sentisse essa dor que dói tão profunda
dentro do peito.

Eu quero chorar e me esquecer de tudo
e de todos…
Esquecer da fome mundial,
das doenças incuráveis,
da mazelas sem fim…

Quero chorar egoisticamente,
sentido pena de mim.

Eu quero chorar,
até que as lágrimas todas
saiam e me abandonem,
e expurguem essa dor,
essa emoção sem teto e sem chão.

Chorar tudo até que o tudo se esvazie,
e que esse vazio se junte ao meu vazio,
e sejam enfim dois.

Eu quero chorar todo meu hoje,
sem pensar no amanhã,
sem pensar no depois.

Lilly Araújo

Toca-me

Toca-me

Se me queres tocar,
toca-me.
Mas toca-me suavemente,
como uma brisa de mar.
Toca-me como se beijasse uma rosa
sem a despetalar.

Se me podes tocar,
estende a tua mão amiga,
e teus dedos amantes,
então, toca-me as entranhas
como se nunca antes.

Se me queres e me podes tocar,
venha como um vulcão
e inflama-me a alma,
e me deixe em chamas.
E na hora do amor,
sussurre que me amas.

E se me tocas, eu te aviso
sem medo, sem pudor,
que torno-me tua toda,
entrelaçada nos teus braços de amor.

Lilly Araújo 07/11/14

Fingir

Acho muito difícil pôr a cara na vida.
Sou covarde assumida!
Cansada, ferida, batida.
Minhas canelas roxas já não aguentam mais.

É difícil o andar tateando,
dar com a cara no muro e sorrir,
vomitar as dores pra dentro de si,
e fingir…

Lilly Araujo

Grades

Grades

Imagino-te enciumadamente.
O seu leito preenchido nessa madrugada
por alguém que não eu. Como sempre,
e mesmo tanto tempo depois, ainda sofro.

E percebo no meu sofrer que minha
alma não calejou, e ainda sente a dor fina e aguda
do meu ciúme que também é amor.
E vou te imaginado sem parar nessa minha insônia…

Então, vou desejando morrer de amor,
e vou desejando viver em teus braços,
e vou me cansando de tanto desejar
tantos desejos desencontrados.

E vou me privando de deitar, de dormir
de descansar, de sonhar.Vou gastando minha alma,
chorando lágrimas que já não caem mais,
sucumbidas no meu abismo interior.

Apenas porque nasci dentro de Grades
que insisto em chamar de amor.

© Por Lilly Araújo  – Direitos Autorais Reservados.

Classificada para compor a antologia Poesias Encantadas III, no qual tive a Honra de ter a foto da capa escolhida.

Foto da Capa by Lilly Araújo